"Vida das artes brasileiras passa pela Funarte de algum modo', avalia Maria Marighella - Fernando Frazão/Agência Brasil
E, sim, como fica óbvio pelo sobrenome, ela é neta de Carlos Marighella, um dos principais nomes da luta contra a ditadura militar no Brasil, assassinado em 1969. A herança familiar é motivo de orgulho. Maria atuou no filme Marighella, de 2021, no papel da avó Elza Sento Sé. E diz tirar dessa ancestralidade uma “força suplementar” para encarar grandes responsabilidades, como a que tem agora pela frente na presidência da Funarte.
Agência Brasil: Você tem uma formação profissional e intelectual que passa pela interseção de diferentes caminhos como os das artes cênicas, da gestão pública e da política. Como essa trajetória foi construída até aqui, antes de assumir a presidência da Funarte?
Ali já no final dos 1990, início dos 2000, eu passo a ser gestora de espaço cultural. E essa experiência me leva a experimentar a gestão em outras instituições. Como o Sesc, por exemplo, que me leva pela primeira vez à gestão pública em 2012 na Bahia. A Bahia no governo de Jaques Wagner passa pela primeira vez a ter uma Secretaria de Cultura em 2007. E a Fundação Cultural do Estado da Bahia, que é construída em um tempo próximo à Funarte, se torna responsável pelas políticas das artes. O secretário da época, o professor Albino Rubim, me convida para assumir a coordenação de teatro nesta fundação. Essa experiência faz com que em 2015, na segunda gestão do governo Dilma, quando Francisco Bosco preside a Funarte, eu seja convidada para a coordenação de teatro da instituição.
Só que esse período é tão intenso quanto curto. Ele é interditado pelo impeachment da presidenta Dilma, eu volto para Bahia e para a Secretaria de Cultura. E volto com uma convicção de que nós precisaríamos nos organizar politicamente em uma frente insurgente de ocupação de espaços, disputando linguagem, modos, integrando essa frente feminista, negra, indígena e LGBT na cena institucional. E em 2020, em plena pandemia, sou eleita vereadora de Salvador. Em 2022, me candidatei a deputada federal pelo PT da Bahia e tive uma votação muito expressiva, apesar de não eleita. No contexto da transição do governo Lula, fui convidada a integrar a equipe e escrever sobre a política nacional das artes e a Funarte.
E aí sou convidada por Margareth [Menezes, ministra da Cultura] por causa disso, eu imagino, para presidir a Funarte. Um convite absolutamente inesperado, que entendi como um chamado para participar daquilo que nós estamos chamando de refundação do Ministério da Cultura. E aí no retorno do Ministério da Cultura, no dia 24 de janeiro de 2023, tem o decreto que estabelece a política nacional das artes como atribuição primeira do Ministério da Cultura. Isso é absolutamente inédito para mim e significa dizer que a política nacional das artes não é apenas uma atribuição da Fundação Nacional de Artes, mas de todo o Ministério da Cultura. Então, essa é a primeira tarefa para a gente aqui, atuar nesse ministério refundado no restabelecimento das suas políticas, mas também no futuro dessas políticas na recuperação institucional dessas políticas, mas sobretudo numa necessidade de materializar no país a política nacional das artes.
Maria Marighella diz que é preciso materializar no país a política nacional das artes no país - Fernando Frazão/Agência Brasil
Agência Brasil: Como é voltar para a Funarte depois de tanto tempo? O que mudou na instituição em relação ao ano de 2015? O quanto você já conseguiu mapear de desafios, principalmente daqueles herdados do governo anterior? E quais são os planos da sua gestão para a Funarte?
Isso permite que o resto do Brasil reivindique também essa instituição. Porque você só reivindica aquilo que conhece. Esse ciclo de refundação passa por isso. É ativar o desejo de conexão com essa instituição. O que acontece em períodos de ataque às políticas e às instituições? Elas vão sendo depreciadas. Servidores vão se escondendo em cantinhos para não serem notados e conseguirem fazer seus trabalhos. A gente tem uma tarefa de contar a grandiosidade dela para que ela possa cumprir o seu papel institucional.
E aí, o que eu encontro? Uma Funarte que já havia desde 2015 perdido a capacidade institucional, a capacidade de promoção de políticas públicas. Então não é algo que começa com bolsonarismo, nem com o último governo. Mas é óbvio que a crise com a qual a gente já lidava se torna real nesse governo, se materializa e se agudiza, de maneira intencional, declarada e radicalizada. Então o que eu encontro é uma fundação com uma perda brutal das suas atividades finalísticas. Não por incapacidade, mas por deliberação. Então, uma fundação que perde. Em uma perspectiva de investimento e custeio, é uma instituição que custa mais ao erário do que promove em termos de política pública.
Então, poderia dar muitos exemplos, mas acho que esse é o mais central. Para esses primeiros 100 dias, nós tínhamos uma tarefa que foi realizada logo no primeiro momento pelo governo Lula e pela ministra, que é a recomposição imediata desse orçamento para as áreas finalísticas. E uma mudança radical: uma instituição que estava na iminência de perder a vocação e finalidade tem como primeiro ato a recuperação orçamentária. A gente não só garante esse orçamento, como a gente paga dívidas que a Funarte contraiu no último período e não pagou. Por exemplo, a Funarte descentralizou recursos, através de convênios, sem conseguir pagar prêmios.
De maneira imediata é fazer com que a instituição se mova. Veja a Escola Nacional de Circo. É uma riqueza. Imagina que hoje a escola tem 53 alunos vindo de toda a parte do Brasil e mesmo alunos estrangeiros. É uma referência na América Latina. Hoje, cada aluno para estudar na escola recebe uma bolsa de R$ 2,5 mil. Então, a Funarte tem equipamentos e mecanismos vigentes. Temos um processo desde 2015 sobre a patrimonialização do circo familiar, tradicional, itinerante, através de pequenas bolsas de R$ 20 mil.
A Funarte tem em andamento dois projetos importantes da internacionalização: o Ibermúsica e o Iberescena. Eu inclusive vou segunda-feira a Lisboa para encontrar os 15 países que compõem o programa Iberescena: o comitê de investimento dos países americanos em relação às artes cênicas. E quando eu voltar, na outra semana, estaremos juntos reunidos pela primeira vez no Brasil com o Ibermúsica com os 15 países que compõem a América.
Então, é avançar na construção e na materialização da política nacional das artes, nos mecanismos de fomento que devem começar a ser lançados, na organização do GT [grupo de trabalho] que vai apresentar a regulamentação da Lei Paulo Gustavo, no retorno da lei de fomento à cultura mais longeva que temos, que é a Lei Rouanet. Sessenta e cinco por cento de todo o projeto que tramita pela Rouanet passa pela Funarte. E a gente faz bem pouco nessa história. A ideia não é que a Funarte seja um equipamento apenas de fluxo, mas que ela possa dotar de inteligência esse mecanismo. Que a gente possa extrair informações, dados, indicadores. Que a gente possa ler melhor essa produção, tratar esse mecanismo de forma a descentralizar e garantir mais equidade.
Presidenta da Funarte destaca importância da dimensão econômica da cultura - Fernando Frazão/Agência Brasil
Agência Brasil: Tornar a Funarte mais conhecida da população brasileira passa pela diversificação regional das políticas públicas? Em não focar excessivamente no eixo Sul-Sudeste?
Então, é preciso olhar a nacionalização não só na sua dimensão regional, mas também na dimensão redistributiva. A gente tem uma superconcentração no Sudeste, por exemplo. Mas a gente não está falando de todo o Sudeste. Está falando de dois estados, de duas capitais, dos centros dessas capitais. Os nossos desafios não são apenas regionais. Eles têm camadas muito mais complexas.
A gente está falando de políticas para as artes nas infâncias também. Vivemos agora uma crise relacionada à violência no ambiente escolar, mas nós não falamos que muitas vezes a infância e juventude brasileira estão sendo bombardeadas por um conteúdo que a gente não tem controle. Não temos uma política de composição de um conteúdo cultural e artístico. Estamos falando de uma população com deficiência que vive e não tem o direito a fluir ou produzir arte, porque a gente tem equipamentos e políticas radicalmente capacitistas.
Precisamos reivindicar outros componentes, para que realmente façamos essa cultura que é absolutamente democrática na dimensão do fazer. Ou seja, todo ser vivente é um ser produtor de cultura. Ela está em todos os lugares. É o que Antônio Pitanga dizia: “De onde eu vim, não tinha nada, mas nesse nada, tinha cultura”. É sobre transformar esse saber tão nosso que está em todo lugar em um direito. E isso precisa ser mediado pela política pública.
Agência Brasil: Como está o cronograma em relação ao retorno da Funarte para o Palácio Capanema, aqui no Rio de Janeiro? Já existe uma previsão de conclusão das obras?
Agência Brasil: Historicamente, questões estritamente econômicas costumam ganhar destaque nas transições de governo. De que forma políticas relacionada à cultura e às artes também podem contribuir nesse campo?
A atividade cultural move bilhões no mundo. Mas não necessariamente essa dimensão redistribui. Muitas vezes há dimensões que colonizam e são concentradoras. Ao passo que a gente precisa valorizar cultura. Uma política para as artes precisa pensar não só no potencial de fomento, mecanismo de indução, mas também nas leis de amparo aos trabalhadores das artes. As questões trabalhistas, previdenciárias e de proteção social. Organizar esse sistema e fazer com que ele seja sustentável, amoroso e solidário é um desafio do século 21.
Agência Brasil: De que forma a memória do seu avô, Carlos Marighella, e de tudo o que ele representa na história do país, atravessa a sua própria trajetória? De que forma ele faz parte da construção da sua identidade?
Óbvio que não é apenas isso. É uma responsabilidade imensa. Não se anda impune pelo mundo quando se sabe tanto. É impossível ler uma sessão da admissibilidade do impeachment e não entender que nós estávamos ali avançando por um abismo, um esgarçamento da democracia brasileira. Por isso que o bolsonarismo me indignou todos os dias, mas ele nunca me espantou. Então, a responsabilidade com a memória e com essas informações da história nos dá um horizonte de responsabilidade muito profundo e nós não pretendemos recuar dessa responsabilidade com o país. E acho que, enquanto o Brasil precisar reencontrar com a sua história, Marighella será esse horizonte que nos orientará.