Família criativa
Enquanto criança, Tamires Rocha, 29, empresária, cantora e moradora da favela do Boqueirão, observava a carreira do pai com muita lucidez. “Via as pessoas indo entrevistá-lo em casa, ele indo aos estúdios e se preparando para os shows.”, afirma.
Como se tivesse um “lado B”, Sabotage demonstrava um lado companheiro à família, sobretudo aos filhos e à esposa. “A gente participava da criação das letras, ele compartilhava as batidas conosco e perguntava o que nós achávamos”, relata Tamires, que é a filha caçula do Sabotage.
No entanto, ainda na ingenuidade da infância, Tamires não compreendia a real grandiosidade que Maurinho representava para o cenário musical brasileiro. “Sabia que ele era um cantor, mas não da proporção que ele tinha. Mas me lembro dele nos levar para participar dos shows, subir aos palcos e cantar ‘Rap é Compromisso’ com ele”, conta.
Embora ele fosse uma personalidade que cantasse sobre as durezas socioeconômicas vivenciadas por um negro favelado, Sabotage ainda premitia se encantar pelas melodias doces de uma canção infantojuvenil.
“Teve uma vez que ele foi nos levar à escola, mas ao chegar lá, estava tocando a música: ‘Aquarela’, do Toquinho. No mesmo instante, o meu pai disse: ‘Nossaâ?¦ essa é a minha música, eu gosto tanto dela.”.
Para além disso, a jovem também se recorda que, mesmo que o pai estivesse imerso na produção musical, ele distanciava-se dessa atividade para dar a devida atenção aos filhos. “Ele parava tudo o que estava fazendo para nos dar almoço, ovo e linguiça era o que ele mais fazia pra nós. Depois de nos servir, aí sim ele voltava a compor novamente.”, disse.
Dama Tereza
Maria Dalva e Mauro Mateus se conheceram ainda crianças, na época da escola, na favela do Canão. Passados os anos, o casal decidiu trilhar um caminho junto, onde Maria passa a acompanhar Mauro nas batalhas de rima e de breaking.
“Eles se conheceram na infância. Ela viu todos os processos deles, sabe? Nunca deixou de acreditar nos sonhos dele, sempre o apoiou. Acompanhava ele nas gravações e nos shows”, relata Tamires sobre a relação dos pais.
Quando a agenda artística de Sabotage começou a ficar mais ‘apertada’, foi Maria Dalva quem segurou as pontas dentro de casa, cuidando das crianças e da rotina de organização do lar.
A companheira também ajudava a construir as letras, rima e possíveis batidas de uma canção. “Ela ajudava nas bases, nos blocos das músicas que ele cantava. Ela mostrava o que achava legal”, reforça a filha.
LEIA TAMBÉMMusa inspiradora de ‘Love Song ’ e ‘Dama Tereza’, Maria Dalva foi um dos principais pilares para a ascensão do rapper. “Até hoje, no legado do Sabotage, é ela quem está por trás de tudo. Quando o meu pai estava vivo, era ela quem estava com ele no cotidiano.”, afirma.
Para Wanderson, o pai era um verdadeiro sonhador, além de ser um grande professor às pessoas de modo geral. Já que sempre gostava de repassar conselhos sobre como ser um bom sujeito na vida.
“Ele só se envolveu com coisa errada [tráfico de drogas] pois ele foi imposto por conta da necessidade financeira, porque ele gostava de escolher as coisas, ele sabia o que era certo e o que era errado.”, disse.
No auge dos anos 1980 e 1990 no Brasil, o caminho da vulnerabilidade social já era quase que certo para um homem negro retinto, sobretudo de origem periférica e sem conclusão do ensino fundamental.
Segundo Wanderson, o pai nunca se orgulhou de ter passado, ao longo da juventude, pela vida do crime. Foram diversas tentativas para sair desse caminho marginalizado, em busca de alcançar outras fontes de renda.
“Teve uma época em que ele saiu do tráfico de drogas e começou a trabalhar na feira. Ele montava e desmontava a barraca, ficava a madrugada toda até terminar [esse processo]. Ele ganhava R$ 10 por dia trabalhando”, relata.
Desde a morte do Sabotage, ocorrida no dia 24 de janeiro de 2003, o cenário estrutural das periferias mudou, principalmente em uma grande metrópole como São Paulo. No entanto, alguns quesitosainda se assemelham aos das décadas anteriores.
Para Tamires, Sabotage ajudou a sociedade a refletir sobre como o direito à cidade era inexistente nas quebradas paulistanas. “Ele falava do que estava acontecendo nas favelas, mas as músicas deles ainda continuam muito atuais [â?¦] O que ele fala é atemporal.”, disse.
‘Agora tem mais escolas, saneamento básico e espaços culturais nas favelas, antigamente isso não existia. Mas ainda vemos o racismo, discriminação social e falta de emprego para pessoas das periferias’.
Tamires, filha do Sabotage
Assassinado com quatro tiros pelas costas, mesmo há mais de dez anos longe da vida do crime, Sabotage conseguiu deixar palavras de denúncia por meio das músicas, utilizando o hip hop, funk e samba, como forma de protesto.
“O legado dele não é só o nome Sabotage, ele faz muitas coisas dentro das pessoas que a gente nem imagina, dentro de casas que a gente nunca entrou, mas a música dele entrou e resgatou a vida das pessoas.”, encerra Tamires.
Atualmente, Tamires, Wanderson e Maria Dalva atuam no legado do Maestro do Canão, como a gestão do Centro Cultural Sabotage, localizado na Praça Frei José Maria Lorenzetti, no bairro Saúde, zona sul de São Paulo. E, também, nas produções da marca Sabotage.
Diretamente da Brasilândia, na zona norte de São Paulo, mas atual morador de Franco da Rocha, DJ Hadji, 47, foi o DJ e amigo de Sabotage, bem no início da carreira do Maestro do Canão.
Ainda nos anos 1990, ambos trocaram ideia pela primeira vez em uma festa, na qual Hadji discotecou nos intervalos dos outros artistas e Sabotage abriu o show do Grupo RZO (Rapaziada da Zona Oeste) – composto por Sandrão, Helião, Negra Li, Calado e DJ Cia.
Hadji conta que ficou impressionado pelo jeito único do rapper. “O Sabotage se destacava por conta do penteado dele e daquele jeitão acelerado.”, reflete.
Após muitos encontros em meio às festas em que os dois se cruzavam, o famoso Maurinho fez uma proposta para Hadji, o convidando para tocarem juntos. Porém, pensativo com a situação, o DJ demorou alguns dias para aceitar o convite do cria do Canão.
“Ele já tinha me convidado [para ser DJ] mas eu ainda não tinha aceitado porque eu não botava fé nele, não o conhecia muito bem [â?¦] Mas depois, em casa, eu refleti sobre a proposta e aceitei tocarmos juntos.”, diz.
Bem na época em que aceitou o convite para ser o DJ de Sabotage, Hadji intercalava a discotecagem nas noites paulistanas com um trabalho em uma gráfica. Quando os shows começaram a ser mais frequentes, o DJ entrou de cabeça no universo do rap, se consolidando na carreira musical.
“Nós não parávamos de fazer show, era toda semana, a gente não tinha tempo para pensar, sabe?”. Em sequência, Hadji conta que, nos bastidores, Sabotage não parava de escrever as letras para o primeiro álbum de estúdio, o ‘Rap é Compromisso’. Em qualquer oportunidade, o Maestro do Canão mandava uma rima.
“Ele estava muito feliz com aquilo, tudo o que ele queria era rimar. Então ele anotava as letras em tudo, era papel de pão, maço de cigarro e por aí vai.”, conta.
LEIA TAMBÉMAlém disso, DJ Hadji lembra que Sabotage não tinha limites, não era uma personalidade que ficava preso dentro de uma caixinha e performava em diversos campos das artes e da música, no rap, no samba até no cinema.
Atuante na produção e atuação do filme “Carandiru” (2003) – Sabotage também ajudou a construir a trilha sonora do filme “O Invasor” (2001). Para Hadji, Maurinho engrandecia a população periférica e fazia questão de inserir amigos e colegas na ascensão das novas mídias.
“Sabotage levou todo mundo da quebrada pro cinema, levou todo mundo do rap pro filme ‘Carandiru’. Ele quem colocou o rap nas telinhas, ele fez uma revolução na história.”.
Como uma recente memória antes do assassinato do amigo e parceiro de profissão, Hadji conta que um dos últimos shows que os dois tocaram juntos foi produzido pelo Chorão, vocalista do Charlie Brown Jr, realizado em uma pista de skate.
LEIA TAMBÉMNo entanto, naquele jeito acelerado e frenético que apenas o Maestro do Canão tinha, o DJ relata que o artista abandonou o palco antes da hora. “Ele cantou quatro músicas porque ninguém estava prestando atenção nele, saiu indignado”, conta dando risada.
DJ Hadji não ocupava apenas um espaço profissional na vida do rapper. Mas sim, transitava pelo campo familiar e afetivo do cantor. “Maurinho era o cara mais bom que existiu, ele não media esforços para te ajudar. Todos da Galeria do Rock amavam ele por conta disso, sabe?”
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