Sábado foi um dia perfeito. Ou quase. Fui dar uma palestra num evento psi (psiquiatras e psicólogos). A ideia era contar a minha experiência convivendo com o transtorno bipolar. Fiz uma apresentação com fotos minhas, ilustrando minhas maluquices. Treinei muito no espelho, com um xampu fazendo as vezes de microfone. Segui um dos mil conselhos que me deram: dias antes comecei a meditar. Funcionou: a ansiedade ficou no lugar dela.
No tão esperado dia, fiz cabelo e maquiagem. Minha habilidade com o rímel deixa a desejar. Tirando um certo excesso de reboco, fiquei vistosa. Meu namorado fofo concordou em ir comigo, para registrar aquele meu momento de glória. E olha que era em São José dos Campos, a 1h50 do meu lar. Na verdade, foram 2h30 no carro do Seu Osvaldemir (pode chamar de Osvaldo), um simpático motorista que andava de ré.
Como a minha palestra era depois do almoço, nos adiantamos para pegar um lugar no restaurante do complexo, uma padoca chamada Padoca. Lá fizemos o que se faz num estabelecimento desses: nos enchemos de pão, inclusive de sobremesa, uma fatia de brioche com amêndoas e um pó por mim desconhecido (açúcar de confeiteiro?), mas gostoso pra caramba. Dividimos, mas era tarde demais. O carboidrato já corria solto em nosso organismo.
Voltamos para o auditório. Importante dizer que eu estava usando um macacão preto com decote transpassado e mangas ¾, semi bufantes. Para dar uma quebrada, estava com um tênis Vans. O auge do estilo. Dei uma última respirada, até chamarem meu nome. Levantei toda faceira, peguei o xampu, ops, o microfone, e me posicionei embaixo de um holofote. O que se seguiu foi a plateia rindo e se emocionando, além de um final surpreendente com aplausos de pé.
Sentei-me lateralizada numa cadeira no palco (que postura!), ao lado dos outros dois palestrantes do bloco sobre o transtorno bipolar. A primeira pergunta foi pra mim. Uma pergunta longa e cadenciada. Confesso que me perdi na fala da moça super simpática e, por fim, não entendi porra nenhuma. Isso não me impediu de dar uma resposta toda trabalhada na bipolaridade. Não tinha erro.
Voltamos no carro do Seu Osvaldemir, que nos levou em casa, mais uma vez, com o freio de mão puxado. Eu suada na axila (não deu para evitar um certo nervosismo), meu namorado na paz de quem estava com um bom crédito comigo. Chegando em casa, o dia ainda não tinha acabado. Tomamos banho e nos arrumamos, já que tínhamos a festa da minha melhor amiga de infância. Claro que eu não molhei o rosto, para aproveitar um pouco mais aquela make. Vesti uma legging xadrez e uma suéter preto de gola alta, que delineavam a minha atual magreza, sedenta por elogios.
A festa estava muito agradável. Meu namorado, que estava conhecendo meus amigos naquele dia, se enturmou muito bem. Ele tomou Clericot (uma sangria de vinho branco) e eu um drink sem álcool. A última vez que o acompanhei no Clericot fiquei em semi-coma por dois dias, então preferi uma batida de morango com água com gás. A música foi o ponto alto. Um rapaz, muito elegante e estiloso, tocava e cantava, brilhantemente, músicas que conhecíamos as letras.
Nada mais simpático. Eu e meu namorado chamamos a atenção no meio de pessoas fazendo bodas de Cristal (15 anos) ou até mesmo de porcelana (20), já que nosso namoro é pós-separações (eu na faixa dos 40, ele na dos 50). Mais do que a atenção, sentíamos os olhares invejosos na nossa nuca, enquanto dávamos beijos apaixonados.
Em sintonia total, nos sentamos entrelaçados e começamos a imaginar nosso futuro juntos. Quer coisa mais gostosa do que essa? Quase senti o coração dele batendo no mesmo passo que o meu, enquanto meu rosto esquentava de felicidade. Perfeito, né? Só que, de repente, falei uma besteira, pra dizer o mínimo. Além de estragar aquela noite e contaminar aquele dia incrível, foram pro buraco os dois dias que se seguiram. Calma, vou contar. Perguntei como ele me via dali a 5 anos. Ele falou qualquer coisa linda e depois completou: "Você já vai estar no 4º ou 5º …". No que eu, impulsiva e estupidamente, completei dizendo: "maridos".
Não precisa ser um gênio para saber que ele se referia a livros. Acredite, se achar por bem, foi uma piada. Uma piada sarcástica, fora de hora, sem graça nem noção. Mas te juro, foi uma piada. Meu namorado interrompeu o sonho acordado e bradou: "Vamos embora.". Já no carro, começou o meu calvário. Ele tinha ficado extremamente ofendido e deixou isso claro até hora que fechou os olhos para dormir, me deixando insone e ardendo no fogo do inferno, só nocauteada depois de uma bela dose de Frontal.
Você não tem como saber, mas eu durmo com um chicote imaginário do lado da cama. No primeiro sinal de arrependimento, já me chicoteio mentalmente. Tudo o que eu pensava era: "Por que, meu Deus? Por que eu falei essa merda?". O que mais me doeu foi que eu faria aquele jogo da imaginação do nosso futuro por horas, talvez dias. Sabe quando você está tão louco e arrependido que fica pensando (delirando) em maneiras de voltar no tempo?
Infelizmente, querida, a vida não é o filme "De volta pro futuro 2". Acordei angustiada, olhei para o meu carrasco digo, namorado, e disse: "Me perdoa, por favor.". Ele respondeu, sem brilho no olhar e nenhum sorriso: "Esquece isso.". Como esquecer, me diz? Tomamos café da manhã de pé na cozinha e ele foi embora, tinha que trabalhar. É importante ilustrar o cenário: era um domingo, frio, nublado, chuvoso e com fumaça de queimada.
Eu tinha um podcast para ir, como entrevistada. Minha vontade era cavar um buraco no colchão, com uma colher de sobremesa, e me enfiar. Tomei a difícil decisão de ir, já que seria sacanagem faltar. Peguei o carro e caí na estrada, embaixo daquele céu cinza elefante. Vou resumir: o estúdio era num buraco, me caguei de medo, e, na volta, liguei para o namorado no desespero: se acontecesse algo comigo, que alguém tivesse conhecimento.
Antes de sair de casa, escrevi uma mensagem de amor pra ele. Ele respondeu dizendo, sinceramente, que sentia o mesmo e ainda pediu desculpas pela sua reação, justificando com um trauma de rejeição. Estava resolvido, agora era seguir. Seguir? Você não me conhece. No dia seguinte, uma bloody segunda-feira, mastiguei e remoí essa história até virar purê. Segui vários caminhos: comecei no banho, pensando como teria sido se tivesse acontecido o contrário. Se, após eu dizer "Você estaria na quarta ou quinta…" ele mandasse: "Esposas!". Me liguei que não teria sido gostoso, mas, pela minha estrutura humorística ácida, geraria um: "Nossa, como você é idiota." e voltaria pra programação do amor.
Esse raciocínio me aliviou uns 15%. Ainda tínhamos 85% pra digerir. Como próxima estratégia, liguei pras minhas irmãs. Uma por vez. A primeira disse que tinha sido uma piada infeliz, mas que não era tão grave como eu estava pintando. Então liguei pra outra mana. Essa com um humor afiadíssimo. Contei pra ela o drama e ela deu uma bela risada. Era oficial, ela tinha achado a piada boa. E completou: "Fala sério que vocês sofreram por isso…". A porcentagem do Allivium (alívio + ibuprofeno pra tirar a dor) subiu consideravelmente.
Por fim, a amada e temida psicóloga. Claro que na terapia dei uma choradinha. Sei que você acha que estou exagerando, mas sou bipolar, esqueceu? Lá vamos nós para as reflexões freudianas. Por que insisto em tentar estragar o que é bom na minha vida? Por que não me sinto merecedora de que alguém me ame e faça coisas legais por mim? E a conclusão: o que rolou foi um teste para saber se ele gosta de mim de verdade. Se vai encarar mesmo a Bia como ela é.
Mais à noite, arranquei o band-aid de vez. Contei pra meu namorado tudo o que tinha feito no dia para elaborar o ocorrido: as irmãs, as lágrimas, a opinião do Freud. Ainda jurei que nunca mais faria uma piada. Ele me estimulou a continuar fazendo piadas (um pouco mais leves, de preferência). Aquela ferida estava, finalmente, curada.
O fato é que a vida é feita de imperfeições. O importante é não levá-la tão a sério. Mesmo com motorista lerdo, pão doce, Clericot e piadas bobas, não dá pra negar, a vida tem a sua graça.
jovem pan