O "estudo do componente indígena", ao contrário do que dá a entender o governador, não substitui a "consulta prévia, livre, informada e culturalmente adequada" dos povos indígenas tal qual prevista na Convenção 169 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que foi promulgada no Brasil por meio de um decreto de 2004 (nº 5.041), sucedido por um decreto de 2019 (10.088). Em uma recomendação dirigida ao governo federal no último dia 21, a DPU (Defensoria Pública da União) lembrou que a consulta prévia "deve ser realizada pelo Poder Público antes de tomar a decisão sobre as medidas pretendidas". A resposta dos indígenas deve ser vinculada à "realização dos estudos ambientais" e à própria "elaboração das condicionantes impostas para a emissão das licenças prévia, de instalação e de operação".
A consulta prévia prevista na Convenção da OIT também "não se confunde", ressalta a DPU, com audiência pública prevista na resolução nº 9/1987 do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente).
O mesmo alerta já fora feito, em 17 de março último, pela Rede Xingu+, uma articulação entre organizações de povos indígenas, associações de comunidades tradicionais e instituições da sociedade civil da bacia do rio Xingu. Em ofício ao Ibama, a coalizão lembrou que "a implantação de empreendimento com intervenção direta em terras indígenas deve observar procedimentos rigorosos que envolvem a avaliação de impactos ambientais e socioculturais e demais procedimentos do licenciamento ambiental, assim como a realização da consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas afetados, com vistas a garantir que o empreendimento não afete a integridade das Terras Indígenas e respeite os direitos dos povos indígenas".
São evidentes as expectativas e as pressões políticas que cercam o asfaltamento da rodovia MT-322, aberta ainda durante a ditadura militar e então conhecida como BR-080. É uma obra imensa. Além do asfaltamento de 514 km, como consta de um plano anunciado pelo governo em 4 de janeiro último, está prevista a construção de uma ponte sobre o rio Xingu. No ano passado, o governo anunciou ter asfaltado 2,5 mil km de estradas em Mato Grosso ao custo de R$ 2,5 bilhões. Assim, a obra da MT-322 custaria cerca de R$ 514 milhões apenas com o asfaltamento.
A obra é estratégica para os interesses do agronegócio. A Rede Xingu+ observou que o asfaltamento e a ponte vão "facilitar a conexão entre a região produtores de grãos do nordeste de Mato Grosso ao corredor de escoamento graneleiro da rodovia BR-163". A obra se insere num conjunto maior de empreendimentos destinados ao escoamento de grãos da região, como as ferrovias Ferrogrão, Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste) e Estrada de Ferro Matogrossense, além da concessão do sistema da BR-158.
Lideranças indígenas já pediram ao governo Bolsonaro uma consulta prévia
O avanço da obra, no governo estadual, ganhou corpo também graças a manobras administrativas feitas pela Funai e pelo Ibama ainda durante o governo Bolsonaro. Em 9 de fevereiro último, o governo de Mato Grosso publicou um edital de concorrência com o objetivo de contratar uma empresa destinada a realizar estudos do componente indígena do licenciamento ambiental da obra. O governo tomou como referência um TRE (Termo de Referência Específica) emitido pela Funai em 20 de setembro de 2020 e renovado em 31 de agosto de 2022.
Nesse meio tempo, a ATIX (Associação Território Indígena do Xingu) e o Instituto Raoni, representativas dos povos indígenas das áreas diretamente afetadas, enviaram à Funai, ao Ibama e outros órgãos públicos uma carta conjunta das lideranças dos dois territórios produzida após um debate realizado em julho de 2022 na aldeia Piaraçu, que fica ao lado da estrada. O ofício foi assinado por Raoni e por Ianukula Kaiaby Suyá, presidente da ATIX, e a carta foi subscrita por lideranças Kayapó, Trumai, Kaiaby, Suyá e Tapayuna. |
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