A guerra civil na Síria foi nos últimos 13 anos o exemplo clássico de uma guerra por procuração dentro do Oriente Médio, onde os múltiplos beligerantes nesse emaranhado complexo, não serviam apenas aos seus próprios interesses, mas também à senhores externos.
A guerra civil na Síria foi nos últimos 13 anos o exemplo clássico de uma guerra por procuração dentro do Oriente Médio, onde os múltiplos beligerantes nesse emaranhado complexo, não serviam apenas aos seus próprios interesses, mas também à senhores externos. O papel fundamental da Rússia e do Irã na sustentação da ditadura Assad é amplamente conhecido, assim como o financiamento americano aos curdos e parte dos rebeldes mais seculares, contudo, pouco se fala de um importante ator regional que tem interesse direto na resolução desse conflito, a Turquia. A problemática que coloca os turcos e os árabes-sírios em lados opostos, tem fortes raízes históricas, mas hoje se resume a questões econômicas e essencialmente políticas.
No passado, o influente e temido Império Turco Otomano, subjugou dezenas de povos sob seu controle territorial. Os abusos cometidos contra cristãos, muçulmanos xiitas e outras minorias étnicas, culminou com a perpetração de genocídios, que vitimaram milhões de armênios, gregos, curdos e árabes. Aquele que outrora foi uma das maiores forças coloniais do Oriente Médio, perdeu a primeira guerra mundial e teve seu território desmembrado como consequência.
Um dos países que nasceu a partir da dissolução do Império Otomano, foi a Síria, que mesmo sendo um país de maioria muçulmana sunita, assim como a Turquia, não conduziu uma boa política externa com seu vizinho. As disputas territoriais pela região de Hatay, assim como desavenças sobre a gestão de recursos hídricos relacionadas ao Rio Tigre e Rio Eufrates, são apenas alguns exemplos de grandes problemas entre as duas nações. O apoio sírio ao movimento separatista curdo dentro da Turquia, tornou a situação ainda mais insustentável, e apesar de certos momentos de cooperação entre Assad e Erdogan, a postura favorável aos rebeldes deixou claro, que as rusgas do passado ainda se mantinham.
Durante todos esses 13 anos de guerra civil, a Turquia foi o país que mais recebeu sírios, chegando ao impressionante número de 4 milhões de pessoas em contas oficiais, mas que em dados extraoficiais pode ser muito maior. A presença de milhões de refugiados em regiões pobres do país e sem o conhecimento da língua local, fez com que muitos deles não conseguissem se integrar no mercado de trabalho turco e dependessem cada vez mais de um estado com enormes dificuldades econômicas.
A Turquia passa por um período de alta inflação de itens básicos, enorme desvalorização de sua moeda e da necessidade de sua própria população por recursos sociais. Muitos turcos, todavia, argumentam que a quantidade de refugiados também dependendo dos mesmos recursos, drenou os cofres públicos de algumas regiões e apenas contribuiu para a derrocada econômica turca dos anos recentes. Com a queda de Assad e o nascimento de um novo país, Erdogan tem a esperança de poder repatriar os milhões de sírios e aliviar a situação econômica e social de algumas regiões, algo que lhe traria grande ganho político interno.
Na Síria, cerca de 10% de toda a população é curda, enquanto que na Turquia, onde não há dados oficiais sobre a composição étnica da população, os curdos podem chegar a quase 20%. Os curdos são até hoje a maior etnia do mundo sem um estado soberano, onde quase 40 milhões de pessoas da mesma etnia, língua e costumes, vivem divididas nas fronteiras de quatro países, sendo tratados como estrangeiros no local onde nasceram, geração após geração.
O sonho de criar o Curdistão é antigo, e remonta também o final da primeira guerra mundial. Mesmo sendo formalizado em planos, nunca saiu do papel e hoje com maior autonomia no Iraque e na Síria, há uma faísca presente nos demais curdos para utilizar esse momento para lutar por mais autonomia e eventualmente até mesmo por soberania. Erdogan tem como seu principal inimigo interno, todos os movimentos separatistas curdos, muitos dos quais foram considerados organizações terroristas aos olhos de Ancara. Apoiar os rebeldes árabes sunitas, é também dar-lhes uma missão no futuro, para que acabem com a autonomia curda em uma nova Síria e evitem com que esse sentimento independentista possa atravessar a fronteira e chegar aos curdos na Turquia.
Na última semana novas informações chegam à luz da imprensa internacional, que de fato, mostram um grande envolvimento financeiro e até mesmo militar dos turcos com os rebeldes vitoriosos na Síria. Por enquanto, o governo da Turquia diz apenas acompanhar o desenrolar político na sua fronteira sul com bastante atenção, sem admitir nenhum envolvimento direto com a campanha vitoriosa do HTS na derrubada de Assad. A postura pragmática demonstrada contrasta com o forte desejo turco em solucionar a crise na Síria à sua própria maneira, além do sonho neo-otomano de Erdogan de recuperar o prestígio do finado império turco. Por hora, muito precisa ser resolvido em Damasco, antes que qualquer vontade turca seja atendida, mas está cada vez mais evidente que as decisões na Síria no futuro passarão novamente pelos palácios do governo da Turquia.