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"Nada mais difícil que a prisão": quem é a refugiada que deixou país para ganhar medalha olímpica

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Por Rede Vida Brasil

03/01/2025 às 07:21:11 - Atualizado há
Em entrevista exclusiva ao ge, boxeadora Cindy Ngamba conta que viveu 10 anos longe da mãe, sofreu bullying na infância e lembra prisão na Inglaterra: "Foram os piores anos da minha vida" Equipe de Refugiados: Cindy Ngamba fica com bronze no boxe

Cindy Ngamba estava sozinha, não dormiu e só chorou durante as mais de 24 horas em que ficou presa no centro de detenção feminina de Londres, na Inglaterra. Foi algemada, jogada em uma van. Aos 18 anos, viu uma visita de rotina ao Centro de Imigração, em Manchester, se transformar em seu maior pesadelo.

– Eu fiquei sentada a noite toda. Tentei dormir e não consegui, porque estava em choque, chorando e pensando: é isso para mim. Vou ser mandada de volta ao país que deixei – conta Cindy, revivendo as cenas na memória, em entrevista exclusiva ao ge.

Naquele dia, já boxeadora e estudante da Universidade de Bolton, Cindy foi levada pela polícia sem explicações, enquanto gritava pelo irmão, Kennet - preso e transportado para outro local.

Ela nunca se recuperou completamente. Mas transformou o medo em combustível, tornando-se, em 2024, a primeira medalhista da história das equipes de refugiados em Olimpíadas.

– Nada na vida para mim vai ser mais difícil do que a prisão no centro de imigração. Então, quando entro no ringue, eu sempre comparo e penso: isso não é nada perto do que vivi.

Boxeadora Cindy Ngamba, primeira refugiada medalhista olímpica, quando criança

Arquivo Pessoal

A conquista da medalha de bronze, nos Jogos de Paris, representa a realização de um sonho. Sonho que começou ainda criança, como forma de resistir às dificuldades da vida como refugiada de Camarões no Reino Unido.

Cindy deixou o país natal aos 11 anos, ao lado do irmão, um ano mais velho, para morar com o pai em Bolton, na Inglaterra, enquanto a mãe, Gisette, acumulando trabalhos para alimentar os filhos, foi viver na França, onde permaneceu até o reencontro com os dois.

– Passei 10 anos sem minha mãe. Tive que me tornar adulta antes da idade de ser, então meu irmão era como um pai e uma mãe, cuidou de mim, e olhando para trás vejo que me fez quem sou agora. Forte na minha própria luta.

Cindy Ngamba, boxeadora e primeira refugiada medalhista olímpica, junto com as irmãs por parte de pai

Arquivo Pessoal

Foi Kennet, aliás, quem acalmou a irmã no momento de maior medo de sua vida, quando esteve presa no Centro de Detenção, prestes a ser deportada sem qualquer contato no país de nascença.

Com uma única ligação de telefone liberada, Cindy soube pelo irmão que a mãe havia falado com o tio, funcionário do Governo, para conseguir a soltura dos dois.

Cindy Ngamba e o irmão Kennet, filho da mesma mãe e o mais próximo da boxeadora

Arquivo Pessoal

Forçada a esquecer o próprio trauma, passou cinco anos, dos 16 aos 21, aplicando na imigração na tentativa de conseguir o visto de refugiada.

Quando enfim autorizaram o caso, foi por conta de sua orientação sexual: a homossexualidade é ilegal em Camarões, com pena prevista de até cinco anos de prisão e relatos de tortura e violência no país.

– Eu tive que usar minha sexualidade porque eles podiam me mandar de volta e eu seria machucada – desabafa a lutadora, que precisou provar a história às autoridades, com entrevistas de conhecidos e mensagens de parceiras antigas no celular.

– Foram os piores anos da minha vida. Passei todos os segundos, minutos, horas, dias, semanas, meses, anos, sabendo que a qualquer momento poderia ser levada de volta ao país que deixei.

Cindy Ngamba assina cartaz dela na escola Devonshire Road, em Bolton, na Inglaterra

Arquivo Pessoal

Vivendo com medo e sem a referência materna, Cindy mal falava inglês e conta que sofreu bullying na escola por conta do sotaque e da aparência física.

Com 110 kg na época, apostou no futebol, pelo Bolton Lads and Girls Club, para perder peso e viver o sonho de ser jogadora. Só não imaginava que no time perceberia: o treino não era tão desafiador. E até tédio ela sentiu.

Foi então no boxe, a poucos metros daquele campo, que encontrou a forma de recuperar a própria confiança, indo de introvertida a extrovertida, como ela mesmo descreve.

– Saindo do treino, vi alguns garotos vindo de uma academia de boxe, abri a porta e o cheiro de suor me atingiu. Lembro que só pensei: nossa, é incrível, o que é isso? Porque quando cheguei no Reino Unido eu nunca tinha ouvido falar de boxe em toda a minha vida.

Cindy Ngamba, primeira refugiada medalhista olímpica, e o pai Jerome Ngamba

Arquivo Pessoal

Cindy quis tentar. O técnico, porém, Dave Langdon, não acreditava no boxe feminino, e por cerca de dois anos recebia a menina, então adolescente, com o mesmo tipo de treino todo os dias: 10 marinheiros, 10 agachamentos e três minutos de skipping - ou corrida estacionária.

Cindy Ngamba mostra medalha de bronze dos Jogos de Paris a ex-treinadores e amigos

Arquivo Pessoal

Foi aprendendo a mover os pés, as mãos, passou a bater nos "pads", que são como almofadas, e demorou três a quatro anos para enfim disputar a primeira luta. Olhando para trás, acha que Dave só queria ver se ela ficaria firme no esporte, já que muitos desistem quando recebem apenas o básico.

– Lembro que o sparring era tão alto, e meu técnico dizia a ele: bata. Mas ele não queria me bater, então o empurrei e ele me deu um murro. Na hora eu comecei a rir porque pensei: uau, então é assim que você se sente quando leva um murro? Não dói tanto – conta aos risos, se divertindo com a própria história.

– Na minha primeira luta, o sino tocou e eu só vi "vermelho". Não pensei nas minhas técnicas, em nada. Só pensei: eu só vou esmurrar essa garota. No segundo round, pararam a luta, eu ganhei, e é normal, o corpo tem que se acostumar. Quando você sobe no ringue, não é o único se sentindo daquela forma. Nervosa ou em pânico.

Cindy Ngamba pode conquistar medalha inédita para equipe de refugiados

Ben McShane/Sportsfile via Getty Images

Agora, com quase 10 anos de competições, mais experiência e maturidade, passou a subir no ringue com calma.

Foi assim em Paris, inclusive, mesmo com toda a carga emocional por trás da conquista inédita e sob os olhares de parte da família no ginásio, com oito irmãos e irmãs - por parte de pai, com cidadania inglesa -, o tio e a tia presentes.

Kennet, o mais próximo, não conseguiu visto para ir assistir. A mãe, ainda que na França, nunca viu uma luta da filha.

– Ela não gosta, não consegue. Sempre diz: dê tudo de si. Mas não era muito fã desde quando comecei. É um esporte muito perigoso e ela não queria que a filha se machucasse. Só que continuei melhorando, ganhando, ela entendeu e agora só deixa eu fazer minha coisa – admite Cindy, compreensiva.

– Quando minha mão foi levantada como vencedora… eu perdi as palavras. Foi a terceira Olimpíada para os refugiados e as pessoas não achavam que um refugiado iria ganhar uma medalha. Foi um choque. Ainda é um choque. Às vezes sinto que é real e outras vezes sinto que não.

Cindy Winner Djankeu Ngamba comemora o avanço à semifinais das Olimpíadas

Getty Images

Enquanto busca encontrar o limite entre sonho e realidade, Cindy vê a vida mudar. Posa para fotos, entrevistas e sente orgulho à medida que o público demonstra interesse em sua história e aprende sobre refugiados como ela no mundo.

Em 2024, mais de 120 milhões de pessoas foram forçadas a deixar suas casas por conflitos e violência, segundo a ACNUR.

E Cindy, mesmo agora focada no esporte, para decidir se quer virar PRO ou seguir no Amador para os Jogos de Los Angeles ou o Commonwealth em 2026, pensa em no futuro também seguir parte dessa história. Ela estuda Crime e Justiça para ser detetive, policial ou investigadora quando se aposentar.

– Estou tomando meu tempo, porque qualquer decisão sou eu que terei de fazer tudo. Se coloco algo na mente, eu faço. Não vou tentar trapacear ou encontrar o caminho mais fácil. Todo mundo está tentando sobreviver neste mundo. E meu sonho é só ser feliz.

Faixa de "bem vinda de volta a casa" feita para Cindy Ngamba, primeira refugiada medalhista olímpica

Arquivo Pessoal
Fonte: GE
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