Porvir – E como debater o assunto em sala de aula? Mariana Rosa – O capacitismo impregna as práticas na sala de aula de maneira que as pessoas entendam que a turma é, por exemplo, homogênea, como se isso fosse possível, e sabemos que não é.
Mariana Rosa – O capacitismo impregna as práticas na sala de aula de maneira que as pessoas entendam que a turma é, por exemplo, homogênea, como se isso fosse possível, e sabemos que não é. Precisamos trazer esse tema para a escola para que possamos passar a compreender a experiência da deficiência não como algo essencial da biologia, mas como uma construção social, como aquilo que acontece no encontro entre uma pessoa que tem algumas características que estão no seu corpo ou no funcionamento do seu cérebro e que o mundo não acolhe, nem oferece espaços, tecnologias, comunicaçãoâ?¦
Karla Garcia Luiz – O capitalismo exige que as nossas relações sejam baseadas em capacidades, produtividade e lucro. Assim, tudo é estruturado de modo que alguns corpos, incluindo os de pessoas com deficiência, fiquem à margem. Como as estruturas são capacitistas, não acolhem a diversidade, as relações também vão se estabelecendo dentro desse enquadramento, de padrões de função e estéticos. Por exemplo: você vai ter padronizações relacionadas à capacidade de conhecimento, desempenho e produtividade levando em conta o corpo normativo, e tudo o que escapa desse padrão fica excluído.
Karla Garcia Luiz – A nossa educação é extremamente capacitista. Temos um único jeito de dar aula, às vezes um único meio de fazer avaliação. É muito difícil fazer os profissionais pensarem que a gente pode aferir aprendizagem de outra forma que não seja com prova escrita, por exemplo. Esse tipo de estrutura vai determinar como nos relacionamos com os outros.
Mariana Rosa – A escola quebra padrões ao proporcionar espaços de produção de conhecimento e relações em que as pessoas convivem umas com as outras a partir de suas diferenças e não apesar delas. Ou seja, um convívio na diversidade, a experiência de ter pessoas com comportamentos diferentes dos meus, com modos de se locomover diferentes dos meus, maneiras de se expressar diversas etc. Isso faz com que a gente amplie o repertório, passando a compreender melhor essas pessoas que são mal interpretadas.
À medida em que a escola fomenta essa convivência e faz dela parte do currículo, a discussão se politiza, no sentido de entender quais são as relações que fazem com que uma pessoa, por ter determinadas características, viva uma experiência de desigualdade ou opressão.
Mariana Rosa – Quando a gente trabalha isso desde a infância, a curiosidade – que é quase ingênua – ainda não está contaminada pelos preconceitos do mundo e temos a oportunidade de construir saberes a partir de um outro lugar. Paulo Freire diz que a função do professor e da escola é transformar a curiosidade ingênua em uma curiosidade epistemológica. E como seria esse movimento na educação inclusiva? Se um estudante pergunta: “Ele não anda? Ele está em uma cadeira de rodas?” ou “Por que ele não fala?”, são questionamentos que nos dão a oportunidade de pensar sobre os diversos modos de as pessoas viverem, se comunicarem ou se locomoverem. É o momento de oportunizar isso.
Mariana Rosa – Trago um exemplo prático: minha filha recentemente fez uma gastrostomia (procedimento cirúrgico para a fixação de uma sonda alimentar). Ela vinha frequentando a escola e se alimentava oralmente. Quando retornou das férias agora em julho, voltou com uma nova condição de alimentação e as perguntas das crianças são um caldeirão de curiosidades. Os professores podem aproveitá-las para uma série de conteúdos: “Por que ela está se alimentando assim?”; “Ela vai sentir o gosto dos alimentos?” ou “Como se escreve gastrostomia?” Dá para pensar em biologia e língua portuguesa, tudo a partir das perguntas das crianças, disparadas pela convivência. Essas perguntas não existiriam se a gente não estivesse vivendo em um tempo em que a escola não é para todas as pessoas, com todos os desafios.
Mariana Rosa – Nós integramos o coletivo feminista Hellen Keller de Mulheres com Deficiência e Karla comentou comigo sobre sua pesquisa de doutorado, voltada à ética do cuidado, me apresentando o conceito de maneira muito generosa. A ética do cuidado trata da interdependência que a gente precisa ter, ou seja, compreende que todos somos interdependentes e precisamos de cuidado para sobreviver. Nossa vida está sustentada em relações de cuidados. Parece banal lembrar disso, mas tendemos a achar que que só as pessoas com deficiência, que precisam de mediação para se alimentar ou com higiene, por exemplo, é que seriam dependentes. Não é verdade. Pense em um executivo bem-sucedido, quantas relações de cuidado o sustentam na posição que exerce? Alguém que cuida das suas roupas, alguém que faz o serviço de banco ou prepara sua comida, alguém que cuida dos seus filhosâ?¦ A ética do cuidado reposiciona as nossas necessidades e relembra que todos nós dependemos de cuidado para viver.
Karla Garcia Luiz – Pessoas com deficiência vêm produzindo coisas interessantes em diversas áreas, inclusive na área acadêmica. Temos tentado articular esse conhecimento da academia com o ativismo e com as experiências cotidianas para que as pessoas possam ver que pessoas com deficiência também produzem conhecimento sobre elas mesmas. Acho que a escola também pode levar pessoas com deficiência para falar sobre o assunto. Sempre que possível, as pessoas com deficiência precisam ser ouvidas. No próprio livreto, por exemplo, além de Mariana e de mim que escrevemos, tivemos a preocupação de que a ilustração fosse feita por uma mulher com deficiência.
Buscar referências de pessoas com deficiência incrementa o seu argumento. Faz mais sentido e é um compromisso ético mesmo, quando você fala de deficiência, buscar referências que sejam de pessoas com deficiência porque a gente está no mundo. A gente também está produzindo arte e conhecimento.
Karla Garcia Luiz – É importante compreender que as pessoas com deficiência estão espalhadas pelo mundo, produzindo coisas muito interessantes para além de suas biografias. A própria Frida Kahlo, por exemplo, é uma das maiores artistas do século passado. E isso não tem a ver com sua deficiência, apenas. Tem a ver com o fato de ter sido uma grande pintora, que viveu a experiência da deficiência – e a retratou em algumas obras, inclusive.
Logo, é possível encontrar referências de pessoas com deficiência em muitos contextos: nas artes, na música, na literatura, no cinema, nas ciências, ou mesmo na produção de conhecimento científico sobre a deficiência, a depender do que se busca. Indicaria a própria Paloma Santos, que ilustra nosso livreto. É uma grande ilustradora e que experiencia a deficiência. Outras indicações são: o documentário “Crip Camp: revolução pela inclusão”, as contas no Instagram do Coletivo Feminista Helen Keller de Mulheres com Deficiência, do Papo Defiça e da Janela da Patty. Nos livros, indico “O lobo bom e a chapeuzinho vermelho”, escrito pelo Heitor Nuernberg, um garoto autista não-verbal de 12 anos.