O Palácio do Planalto assistiu ao longo da semana a pelo menos duas derrotas no Congresso Nacional. A primeira delas foi o adiamento da votação do Projeto da Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet (PL 2630/2020), mais conhecido como PL das Fake News. O texto, que propõe tornar obrigatória a moderação de conteúdos na internet pelas plataformas digitais, foi retirado da pauta da Câmara dos Deputados na última terça-feira, 2, após pedido do relator, deputado Orlando Silva (PCdoB-SP). Ele alegou precisar de mais tempo para efetuar mudanças na matéria, publicamente apoiada pelo governo federal. Na prática, no entanto, a suspensão aconteceu por falta de votos para aprovação, cenário que preocupa, especialmente às vésperas de outros dois grandes desafios: o arcabouço fiscal e a reforma tributária. No dia seguinte, o Executivo acompanhou um segundo revés, também na Casa Baixa. Desta vez, a derrota veio pela aprovação, a toque de caixa, do projeto de decreto legislativo (PDL) que derruba os decretos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva que alteraram as regras do Marco Legal do Saneamento Básico. O texto, incluído na pauta de última hora e sem aviso prévio ao governo, foi aprovado com 295 votos a favor e 136 contra, e contou com o apoio expressivo de bancadas de partidos que, em tese, integram a base de Lula, como PSD, MDB, União Brasil e o PSB, que controlam 12 dos 37 ministérios. A digital destas siglas na acachapante derrota na votação do PDL irritou lideranças petistas. O líder do governo na Câmara, José Guimarães (PT-CE), chegou a pedir mais tempo para chegar a um acordo sobre a proposta e, sem sucesso, cobrou publicamente os líderes das legendas por terem orientado o voto a favor da derrubada do decreto de Lula. "Esses líderes foram intransigentes a não dialogarem com o líder do governo para votar essa matéria terça ou quarta-feira. Eu nunca vi isso aqui no Parlamento", disse Guimarães, que também citou a necessidade de fazer um "freio de arrumação" na base. "Estão vendo isso? A base derreteu", disse o deputado Mendonça Filho (União Brasil-PE), quando debochou do resultado, enquanto parlamentares bolsonaristas riam.
Embora o adiamento do PL das Fake News e a aprovação do PDL do marco do saneamento tenham motivações distintas, os dois episódios expõem mais uma vez as fragilidades do Executivo para formação de maioria, cinco meses após o início do governo Lula 3. Politicamente falando, o momento para o Planalto é pouco auspicioso. Isso porque o governo ainda não saiu vitorioso de nenhuma votação. Pelo contrário, o terceiro mandato de Lula, até o momento, é marcado no Congresso Nacional por sequências de derrapadas, rachas entre partidos que detêm ministérios, polêmicas envolvendo ministros indicados, medidas provisórias paralisadas – e prestes a caducar – e nenhuma aprovação relevante. O resultado catastrófico, além de expor o grupo de Lula, também aumenta a pressão sobre ministros, agora cobrados publicamente. Em discurso na reinauguração do Conselho de Desenvolvimento Econômico Social Sustentável, o Conselhão, Lula fez uma cobrança a Alexandre Padilha, ministro das Relações Institucionais. “Espero que ele tenha a capacidade de organizar e de articular que ele teve no conselho, dentro do Congresso Nacional. Aí vai facilitar a minha vida", afirmou o presidente. Para virar esse cenário, no entanto, a avaliação é que caberá a Lula fazer o "dever de casa": articular com o Parlamento e constituir, com atraso de cinco meses, uma maioria governista. “Lula é possivelmente o maior negociador da República nas últimas décadas. Portanto, é fato que, para que o governo engrene, será essencial que o presidente esteja à frente das relações com o Congresso. Entretanto, há um risco o envolvimento direto do presidente: caso falhe, deixará o Executivo a descoberto. O Planalto sabe que as ações políticas do presidente devem se concentrar nos bastidores, fazendo com que diversas forças possam convergir para governabilidade. Não é uma tarefa fácil, mas é tão urgente quanto necessária, pois prevemos grandes dificuldades articulação política do governo”, afirma o cientista político e professor de Relações Internacionais no Ibmec-RJ, Lier Pires Ferreira.
“A base parlamentar do governo é precária. Os parlamentares orgânicos com o Planalto não possuem a quantidade e a força necessárias para dar sustentação ao executivo. Por isso, a velha política do ‘toma lá, dá cá’, que rasga a história política do país, ganha contornos cada vez mais acentuado nesse sentido. Mas mesmo a titularidade de ministérios, que no passado, em geral, bastava para acomodar os diferentes interesses políticos, já não tem a eficácia de outrora”, pontua. Pires Ferreira pondera que essa maior dificuldade de Lula em consolidar uma base suficiente para entregar os votos e as aprovações necessários decorre, especialmente, e uma hipertrofia do Legislativo. O cientista político explica que desde o processo de impeachment de Dilma Rousseff (PT), em 2016, o Parlamento ganhou força e protagonismo, especialmente no governo de Jair Bolsonaro, com o Orçamento Secreto, o que faz com que, hoje, Lula dependa de mais articulação política do que em seus dois mandatos anteriores. “Acabou por instituir um verdadeiro parlamentarismo orçamentário pelo qual o Legislativo passou a controlar fatias crescentes do Orçamento. Assim, o governo Lula, hoje, paga o preço dessa hipertrofia, estando de alguma forma limitado em suas ações, considerando que a governabilidade possui um preço cada vez mais elevado”, afirma Lier Pires Ferreira.
Entre deputados, a avaliação é bem parecida. Parlamentares ouvidos pela reportagem afirmam que para formar uma base de apoio sólida, caberá a Lula atrair individualmente os congressistas. Mesmo entre aliados do presidente, o entendimento é que indicações e cargos em ministérios para correligionários não garantem o apoio das bancadas, o que explicaria a falta de fidelidade de membros do União Brasil, MDB, PSB e PSD na votação do PDL do marco do saneamento, por exemplo. “É mais uma derrota. A gente [do PP] tem ajudado com a governabilidade, mas o Lula tem que articular, porque com ministério não está resolvendo. Ministério não conquista deputado. Lula tem que atrair os deputados, não os partidos, porque os parlamentares não estão se vendo representados [pelos ministros escolhidos]", disse o deputado federal José Nelto (PP-GO), em entrevista ao site da Jovem Pan. Outro aspecto que prejudica a consolidação da base de Lula é o descumprimento de acordos por parte do governo. José Nelto avalia que o Parlamento fez um aceno a Lula com a aprovação da PEC da Transição, ainda em dezembro de 2022. No entanto, segundo ele, os congressistas aguardam sinalização semelhante do Palácio do Planalto, o que ainda não aconteceu. “Eles não cumprem os acordos. O deputado quer ser do governo, quer acenos com emendas, quer indicações para com obras nos Estados, quer prestígio. É a política republicana, vivemos um semi-presidencialismo. Se eu fosse prefeito, governador ou presidente, a primeira coisa que faria seria construir a base”, afirmou. A declaração de Zé Nelto ecoa uma insatisfação que, até então, era tratada apenas nos bastidores: os articuladores de Lula vinham sendo cobrados a liberar recursos acertados com o Parlamento na esteira da negociação para a aprovação da PEC da Transição. O represamento das emendas foi assunto da conversa do presidenta da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), com Lula nesta semana.
A semana de derrotas políticas expôs um erro estratégico do governo. A princípio, Lula pretendia segurar a liberação das emendas e os cargos de segundo escalão até que o Congresso votasse pautas de interesse do Planalto, como o novo marco fiscal, por exemplo. A ideia era testar a fidelidade dos parlamentares antes de abrir a porteira. O plano, no entanto, naufragou. Há, porém, uma outra crítica vinda do Parlamento. Segundo parlamentares, a cúpula do governo não tem se mostrado disposta a negociar. O deputado Fernando Monteiro (PP-PE), aliado do governo e autor de um dos projetos do marco do saneamento, chegou a afirmar que tentou negociar com a Casa Civil antes da derrubada do decreto de Lula, mas que não recebeu retorno. "O silêncio, para mim, muitas vezes fala mais alto, e ele falou mais alto que o governo não queria acordo. Que o governo não queria conversar, queria apenas ganhar tempo", afirmou.
Ainda que o adiamento do PL das Fake News e a derrubada do decreto do saneamento representem derrotas inesperadas para o governo Lula, é cedo para falar em traição. O cientista político Paulo Niccoli Ramires, da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), explica que os episódios representam, na prática, a dinâmica do Centrão no Congresso Nacional. Segundo ele, por mais que o grupo político tenha se dissolvido em dois superblocos – um encabeçado por Arthur Lira e outro pelo MDB – a forma de fazer política segue a mesma, o que justificaria as posições contraditórias. "Só vão aprovar projetos caso o Lula conceda benefícios que vão desde ministérios, a cargos de confiança, de primeiro, segundo e terceiro escalões. Lula terá que se articular muito bem, caso a caso, projeto por projeto. Dependendo do assunto, do grau de convencimento e negociação, do ‘toma lá, dá cá', pode ser que consiga aprovar um projeto, mas não necessariamente todas as pautas pelas quais ele foi eleito", explica o cientista político, que prevê grandes dificuldades para o governo. “A base do Congresso é muito conservadora. Lula ganhou o cargo de presidente, isso não significa que o PT tenha vencido no Congresso, então o próprio Arthur Lira faz uma mea culpa, articulando interesses do governo quando é possível, assim como também para a ala bolsonarista, o que mostra uma sociedade muito dividida e um Congresso ainda com hegemonia bolsonarista”, acrescenta. Niccoli Ramirez pondera ainda que, atualmente, Lula já exerce um peso político frente ao Parlamento brasileiro. Entretanto, essa força do petista não se compara ao prestígio exercido entre 2003 e 2010, nos dois primeiros mandatos na Presidência. Uma das diferenças é a alta rejeição de Luiz Inácio, o que abre margem para que os congressistas "revidem", não aceitando em sua totalidade as propostas defendidas pelo Executivo e exigindo maiores esforços das lideranças do governo, mas também do próprio presidente da República. "O governo Lula 3 será um governo que poderá se defrontar com aquilo que chamamos de paralisia decisória. Ou seja, quando o Congresso não aprova, engaveta ou retarda as discussões e votações. A tendência é de muitas dificuldades", conclui.
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